Estava a ver que na minha mesa de consoada não ia ter bacalhau!
Estranho que pareça mas a realidade é que na cidade, moderna, de Banguecoque não há mesmo bacalhau!
E, ceia da consoada sem o fiel amigo é igual a um caldo verde sem um golpe de azeite e uma rodela de chouriço.
O bacalhau, no espaço lusófono, está institucionalizado e, os “portugas”, estejam aonde estiveram, podem abster-se dele durante o ano mas na noite de consoada é que não.
Tive bacalhau e graças ao meu amigo, de longa data, Pedroso Lima, Director de Exportação da SONAE Indústrias que, prontamente, atendeu à minha súplica, de pobre de bacalhau que sou e, depois de lhe ter enviado um SOS através da Internet passado 36 horas, bacalhau às postas, heroicamente, tinha vencido a distância de 15 mil quilómetros, do Porto, até capital tailandesa.
Ao meio dia na Pátria Lusa e sete da noite na Tailândia estava sentado na minha mesa de consoada que demorou pouco mais de uma meia hora. A tradição da “bacalhoada” foi cumprida e,outra, ainda, havia para levar a cabo que era o de visitar os três bairros portugueses, de nomes, (portugueses ou descendentes já ali não existem) em Banguecoque.
Mas pouco depois de sair de minha casa, portuguesa desde os alicerces, à varanda (que a baptisei do Oriente) até ao telhado, telefonei alguém que me é extremamente querida e, uma parte constante, de minha vida que alimenta a minha inspiração de “escribamaníaco”, irreverente, que me ajuda e me dá me alento quando me assento, na minha mesa de trabalho, para uma nova, aventura, nem sempre fácil, de escrever uma história. A minha musa, atendeu a minha chamada telefónica, ouviu a minha voz e eu a dela. Diálogo curto, cerca de um minuto, que me bastou e inspirou-me para escrever esta história que só a ela lha dedico.
A visita a esses bairros a vou fazendo há mais de uma vintena de anos e, muito especialmente na noite de consoada. Este ano iniciei a minha peregrinação pelo bairro da Imaculada Conceição, enquanto que no Natal do ano passado efectuei o trajecto pelo sentido inverso e principiei-o pelo Bairro de Santa Cruz. Pelo meio do caminho fica-me o da Senhora do Rosário (já desaparecidas as casas do bairro e até as gentes luso-descendentes). Valha-me ao menos que o nome da igreja continue a ser conhecido e pronunciado na língua do meu e, também, de todos os lusófonos, Luis de Camões.
O princípio da noite de consoada na capital do antigo Reino do Sião era igual à das noites anteriores. As mesmas filas de carros a esvaziarem o centro e em direcção aos arrabaldes para onde a cidade se estendeu. Sem grandes problemas às oito horas estava a entrar no bairro da Imaculada Conceição, fundado depois de meados do século XVII, pelos padres do “Padroado Português do Oriente”.
Um bairro que conheci de “riquexós” de pedal e onde, pelas ruelas, se poderia circular e estacionar o automóvel. Na noite de minha consoada (todos os dias assim acontece) não havia um metro, que fosse, disponível, para estacionar o veículo. Lá consegui entrar numa das ruas, apertada, e estacionar, o Honda, no adro da igreja da Imaculada.
A noite de consoada no bairros de nomes portugueses, em nada se assemelham às realizadas em Portugal e nos grandes comunidades lusófonas. Não há bacalhau com batatas , perú (mesmo de plástico (tipo Bush no Iraque a fazer de conta), bolo rei, com fava ou sem ela, rabanadas, aletria e frutas secas. Mesas cheinhas de comida, a céu aberto, onde não falta um porquito, assado, coradinho, frangos, peixe assado e frito, grelhado, acompanhado com o famoso arroz tailandês (5 quilos menos de um Euro e meio) e, como bebida, a cerveja ou o “whiskie” escocês ou “Mekong” ( run fabricado localmente).
Nestes bairros, que foram fundados e habitados pelos portugueses e pelas gerações luso-tailandeses que se seguiram, embora, como foi natural e dada à distância não tivessem ficado o bacalhau e outras especialides culinárias, além do portuguesíssimo fio de ovos, ficou o espirito cristão da fraternidade e a hospitalidade, bem característica, dos portugueses.
A noite é de festa e de alegria. As plantas das janelas da beira da rua são ornamentadas com milhares de luzinhas multicoloridas. Não fica ignorada e indiferenciada a decoração do portão de entrada para o cemitério do bairro. O residentes vivem, o seu dia a dia, com os seus mortos. Ainda, ali estão designados nomes e, residem, campas de gente portuguesa e luso-descendente.
Dentro da igreja, com primor decorada, crianças vestidas de anjos,junto ao presépio e os três rapazotes trajados de Reis Magos a rigor, o Melchior,Gaspar e Baltazar vêm com as oferendas, para o Deus Menino, que as entregam a José.
Um padre, sentado, junto ao confessionário, enquando as almas, vivas, não chegam para se limparem dos pecados lá vai lendo, no livro aberto, o breviário. As criancinhas vestidas de anjos caminham para ala da da igreja e começam a dançar ao som da música sacra. A mamãs e os papás, os irmãos e amigos, levantandos ou sentados procuram o melhor ângulo para captar, para a máquina digital, a imagem do seu anjinho.
A nave da igreja tem a lotação esgotada de fieis. Nem todos vivem no bairro da Imaculada Conceição, outros amigos e familiares chegam, ali, de outros pontos da cidade ou provincias para se associarem à ceia e à Missa do Galo.
Enquando não chega a celebração da missa do Galo, aproveito o tempo para dar uma volta ao bairro. Um local que me é, bastante, familiar e me dá gosto caminhar pelas ruas, acanhadas, até à margem do rio Chai Praiá. Em todas as casas há alegria, muita música, muita luz e comida até chegaria para a festa dos Reis.
Numa casa, com um largo pátio, um conjunto de música “rock” num tablado improvisado, com um vocalista, guedelhudo, executa sons de estoirar os ouvidos que atravessa o bairro e chega à outra margem do rio.
Mas afinal será que a noite do Natal de consoada é só de silêncio e de recolhimento?
Não era ali,por certo, no espaço, musical roquista, onde todos os jovens e jovens de saias, apertadas; com um bom palmo acima do joelho, bambaleiam, em estilo erótico, o traseiro.
Aproximei-me da margem do meu rio (o Chao Praiá), no acabar da viela, principal do bairro da Imaculada Conceição e, à aquela hora se quedava calmo. Raios de luzes, verdes e vermelhos das margens de Banguecoque Noi, flutuavam na ondulação, natural, da água.
Dentro da fantasia de minha imaginação, julguei-me, junto, a Rosa Hunter, lusa-descendente, nascida no bairro, por volta dos anos 1800, a consolar-lhe a alma, pelo casamento falhado com o escocês, protestante, Roberto Hunter, que após a separação embarcou os seus dois filhos para a Escócia para ali serem educados na “Igreja Livre da Escócia”. Uma Rosa, murcha, com uma vida dolorosa que absorvia os seus dias rezando, de joelhos e mãos postas, junto ao altar de S. Tomás de Aquino para que as suas crianças voltassem ao seu regaço, no bairro (conhecido e ainda hoje) Sâmsèngue, da Imaculada Conceição.
Dei a última olhadela ao rio do pequeno embarcadouro de canoas e pequenos barcos a motor e dirigi o meu olhar para o fim da viela de acaba no adro. A igreja da Imaculada Conceição estava iluminada até à cruta da torre e as luzes da cruz se avistavam, até longe, num Banguecoque, onde a maioria da população professa a fé budista.
Pelos escassos cem metros do comprimento da viela, mesas abastadas e gente sentada nas soleiras, em bancos e cadeiras sorriam-se para mim, o “portuguet” (português), já assíduo na noite de consoada e todos me ofereciam lugar, alguns se levantavam, para me juntar ao repasto de suas mesas de Natal.
Alguns, já eram velhos e ainda novos quando os conheci, já lá vão uns vinte anos. Outras, faces, com traços fisionómicos de transmontanos que habitualmente os observava, em tempos idos, sentados nas cadeiras da igreja nas celebrações do Natal e Páscoa, estavam os lugares ocupados por outros fieis. A lei do tempo e da natureza já os transportou até às portas do S.Pedro e os colocou no Céu.
O adro tinha sido ocupado por carros. O meu Honda, encravado e sem a minima possibilidade de o retirar dali. Futurei: terei que ficar até até ao fim da Missa do Galo e, sem poder dar a volta de noite ao bairros de Santa Cruz e do Rosário.
A celebração da Missa do Galo começada e as, pessoas, juncadas até à porta da entrada. Quedei-me no largo junto a outros fieis. Observo a mocidade e os seus telemóveis a faiscar luzes anunciando a chegada de uma chamada. Sorrisos, digitalizados, chegam do outro lado que são correspondidos.
A Missa do Galo, a transmissão, da cerimónia, através de autofalantes chegava ao adro e a todo o bairro.
Enquanto decorria a celebração, eu estava sob a protecção do Menino Jesus, para me absolver da minha falta de ter saído do adro e dirigi-me para antiga igreja e onde há mais de 150 anos a Rosa Hunter rezava, pelo regresso dos seus dois filhos da Escócia e adornava, de flores, o altar de S. Tomás de Aquino.
A porta fechada apenas com o trinco e que a pressão do polegar o fez desactivar e a velha porta de madeira de teca cedeu a um leve empurrão. Dentro da antiga igreja muita história havia, ao pó e arrumados por todos os cantos: paramentos; objectos litúrgicos e fotografias de missionários portugueses e estrangeiros que na Imaculada Conceição ensinaram nas escolas e nos altares os bons residentes do bairro os caminhos da fé cristã.
Saí e voltei ao adro. Decorria a cerimónia do beija o Menino Jesus, nas mãos piedosas de um dos padres, celebrantes da Missa do Galo. Ao lado um rapaz vestido com o hábito franciscano, com uma mecha de algodão em rama segura pelos dedos, que embebia, de quando em quando, no líquido de numa tijelinha e lá ia desinfectando os pésinhos do Deus Menino, depois de serem beijados.
A madrugada do dia 25 já tinha começado à uma hora. Os fieis a debandarem da igreja e do adro. Retirei o Honda do “encravanço” a que esteve sujeito por umas horas e guiei-o, com alguma dificuldade dentro do congestionamento até à rua principal.
A noite, a caminhar para o dia, estava serena e fresca. A um quilómetro de distância a caminho de minha casa, passo pela área da “Kaosarn”, local, popular e frequentado por gente jovem, estrangeira, que por pouco dinheiro se hospedam e divertem naquela zona.
Na “Kaosarn” a madrugada ainda era uma criança, com luzes faiscando à porta dos inúmeros bares e discotecas que atiravam para a rua os sons metálicos das bandas, ali actuando, ou dos CD rom.
Gente alegre e despreocupada, da Europa da América ou dos países da Ásia, enchiam a rua “Kaosarn” caminhando com latas de cerveja e coca-cola nas mãos.
Passo junto ao palácio do Parlamento, todo iluminado e mais abaixo a imponente estátua do Rei Chulalongkorn que vive, apesar de sua vida terrena ter terminado em 1910, como o símbolo de progresso e de união do povo siamês.
E seguindo a rota do meu regresso ao leito de dormir, um pouco mais ao sul da Praça Real, sigo pela avenida Rajadamoen onde está erigido o monumento da Democracia, também iluminado. Mais abaixo o “Grande Palácio”, a sétima maravilha da naturteza construída pelo homem, a relembrar que nem sempre depois da derrota se gera o caos.
O “Grande Palácio” é a Glória de Aiutaá.
A antiga capital caiu, de facto, em Abril de 1767 às forças invasoras do Reino do Pegú, mas, não tardou que o Reino do Sião, das cinzas, voltasse ao lugar de um grande Reino, debaixo da bênção, orientação e protecção dos seus Reis.
O “Grande Palácio” imortaliza, num dos muros laterais, em frente ao palácio do Ministério da Defesa, foram instaladas as caracteristícas ameias, dos fortes portugueses, a recordar que estas foram, por séculos, uma parte importante e estratégica e defesa da velha capital do Sião, Aiutaá.
José
Martins